O período entre a ascensão e o Pentecoste foi de espera, não porém de inatividade. Para os discípulos foi principalmente um tempo de oração, em que providenciaram a substituição de Judas. Sobre isso, temos o primeiro sermão de Atos. À semelhança da maior parte dos sermões deste livro, talvez tenhamos aí apenas um sumário do que Pedro disse. Entretanto, por trás do relato de Lucas podemos captar os dados originais de tudo quanto o apóstolo disse.
Então, voltaram para Jerusalém, do monte chamado Olival, que dista daquela cidade tanto como a jornada de um sábado. (Atos 1:12)
Conforme instruções que receberam, os apóstolos retraçaram seus passos do monte Olival à cidade, para que ali esperassem o dom do Pai (compare Atos 1:4-5).
Do monte chamado Olival, que fica perto de Jerusalém, à distância do caminho de um sábado: a saber, cerca de 1.100 metros . Essa era a distância que um judeu piedoso podia caminhar no dia de sábado: dois mil côvados, segundo cálculos um tanto complicados feitos a partir de Êxodo 16:29, à luz de Números 35:5. A intenção de Lucas foi simplesmente indicar que a ascensão deu-se nas proximidades de Jerusalém. Entretanto, o emprego desse termo em particular "pressupõe um espantoso conhecimento íntimo — para um grego — dos costumes judaicos" (Hengel, Jesus, p. 107). Pode-se encontrar alguma dificuldade com respeito à referência de Lucas 24:50 à Betânia, que fica a mais do dobro da jornada de um sábado partindo de Jerusalém; mas se as palavras do evangelho significam apenas "na direção de Betânia" (gr. prós Bethaniarí), essa dificuldade é vencida. Seja como for, dificilmente Jesus teria conduzido os discípulos a essa vila só para a ascensão.
Quando ali entraram, subiram para o cenáculo onde se reuniam Pedro, João, Tiago, André, Filipe, Tomé, Bartolomeu, Mateus, Tiago, filho de Alfeu, Simão, o Zelote, e Judas, filho de Tiago. (Atos 1:13)
Subiram para o cenáculo onde se reuniam: O artigo definido (em grego) indica que se tratava de um lugar bem conhecido dos leitores de Lucas. Portanto, pode ser referência ao primeiro livro, Lucas 22:11-12, o aposento onde se celebrou a última Ceia, embora nessa passagem se empregue uma palavra diferente. Tradicionalmente, esse recinto também tem sido identificado como aquele em que a igreja se reunia, na casa de Maria, mãe de João Marcos. Também pode ser o lugar de reunião de Atos 2:1, e aquele em que se reuniram para oração em 4:23-31.
Pedro e Tiago... e Judas, filho de Tiago: Repetem-se os nomes dos apóstolos, embora já tenham sido dados no primeiro volume (Lucas 6:14-16). Talvez Lucas os arrole de novo a fim de demonstrar que embora todos houvessem desertado o Mestre por ocasião de sua prisão, somente Judas cometeu uma traição deliberada. O resto permanecera fiel no coração. A menção de seus nomes também serviria para mostrar que embora as obras individuais não fossem registradas neste livro, todos tomaram parte, entretanto, na obra para a qual Jesus os chamara. As duas listas de Lucas concordam entre si, exceto quanto à omissão de Judas Iscariotes aqui, diferindo das listas de Mateus 10:2-4 e Marcos 3:16-19, só na menção do nome de Judas, filho de Tiago, pois aqueles evangelistas trazem Tadeu (e em algumas versões, Labeu, em alguns textos de Mateus). Estes nomes podem referir-se à mesma pessoa, e talvez identifiquem o "Judas" (não o Iscariotes) de João 14:22.
Simão, o Zelote: ("o cananeu", [que é a palavra aramaica para "zeloso"] Mt. 10:4; Mc. 3:18), assim chamado ou por causa de seu temperamento zeloso, ou por causa de alguma associação com o partido dos zelotes. A Nova Versão Internacional aparentemente adotou esta última interpretação, mas devemos observar que é essa mesma palavra empregada por Paulo, para si mesmo em Atos 22:3 (compare também Gálatas 1:14), e por Tiago, a respeito de alguns membros da igreja em Jerusalém, em Atos 21:20. Em nenhum desses casos pode-se entender que a palavra "Zelote" foi empregada com o sentido mais específico de partidário político.
Neste lugar teriam certa privacidade que combinava bem com seus propósitos, visto que a maior parte do tempo eles investiam na oração (compare Daniel 6:10).
Todos estes perseveravam unânimes em oração, com as mulheres, com Maria, mãe de Jesus, e com os irmãos dele. (Atos 1:14)
Irmãos dele: Nos evangelhos, quatro homens são mencionados como os irmãos de Jesus, a saber: Tiago, José, Simão e Judas (Mateus 13:55; Mc. 6:3). Várias opiniões têm sido sustentadas quanto à natureza de seu relacionamento com Jesus; mas uma leitura natural do Novo Testamento nos sugeriria que, à parte as circunstâncias singulares da concepção de Jesus, aqueles homens foram seus irmãos no sentido comum do termo, isto é, filhos mais jovens de José e Maria. Esta opinião é apoiada pelo sentido significativo "prima facie" ou "primogênito", de Lucas 2:7, e pela dedução natural de Mateus 1:25, de que após o nascimento de Jesus, seguiram-se as relações maritais normais entre José e Maria.
Pode-se concluir aquela freqüência regular ao templo (compare Lucas 24:53; Atos 2:46; 3:1), visto que neste sentido não havia distinção entre eles e seus correligionários judeus. Os crentes viam-se a si mesmos simplesmente como o judaísmo cumprido, o começo do Israel escatológico. Prosseguiam na prática comum dos judeus. Todavia, pelo fato de afirmar-se que homens e mulheres oravam juntos, a referência aqui é principalmente às suas reuniões privadas. Se for esse o caso, o texto grego lança uma luz interessante sobre a prática desses judeus cristãos, visto que relata que se encontravam "em oração", como se Lucas tivesse em mente um tipo especial de prece, embora talvez apenas a ocasião fosse especial.
Uma das características de Lucas é a menção dos momentos de oração. Na verdade, a oração para ele era algo muito importante. Devemos observar três fatos relacionados à oração:
Primeiro, os cristãos primitivos costumavam orar. Assim como a oração havia caracterizado a vida de Jesus, ela caracterizava a de seus seguidores (compare Atos 2:42; 3:1; 4:24 e seguintes; 6:4 e seguintes). Além do mais, Lucas tem certeza de que toda oração sempre tem resposta (compare Atos 1:24-26; 4:31; 9:40; 10:19-20,31; 12:5, 12; 22:10; 27:23-25. Portanto, a oração desempenha um papel importante, ainda que não bem definido, no estabelecimento e cumprimento dos propósitos de Deus. Em nenhum outro texto fica isto mais evidente do que na conexão bem perceptível entre a oração dos discípulos antes do Pentecoste, e o derramamento do Espírito de Deus naquele dia.
Segundo fato: ao desenvolver esse ponto, Lucas enfatiza a persistência dos discípulos na oração. Eles perseveravam unânimes em oração; o verbo também está no imperfeito, no grego, denotando ação repetida ou habitual.
Terceiro fato: a oração comunitária era uma expressão de sua unidade, característica da igreja primitiva — unanimes (versículo 14). Talvez essa oração fosse também um fator que lhes mantivesse a unidade (compare Atos 2:46; 4:24; 5:12; Romanos 15:6; Efésios 4:3).
Também é característica típica de Lucas chamar a atenção para o papel desempenhado pelas mulheres na igreja (compare Atos 5:14; 8:3, 12; 9:2; 12:12; 16:13; 17:4, 12; 22:4). Aqui ele menciona a presença de mulheres nessas reuniões de oração. Outras mulheres seriam as esposas dos discípulos.
A referência à Maria conduz à menção dos irmãos de Jesus também. Antes, não haviam crido na mensagem do Senhor (João 7:5; compare Marcos 6:4), mas agora estão entre os discípulos. Não ficamos sabendo como é que se converteram, mas no caso de Tiago (presumindo-se que se trata do Tiago de I Coríntios 15:7), como no de Paulo, a conversão pode ter ocorrido depois de um encontro com o Jesus ressurreto. Tiago talvez houvesse influenciado seus irmãos.
Outra questão despertou o interesse dos discípulos, a saber, a substituição de Judas. Promoveu-se uma reunião que Pedro presidiu (compare Lucas 22:32), com a presença de cento e vinte "irmãos". Aparentemente se trata de um número aproximado, sem que seja preciso atribuir-lhe um significado especial (observe que, se tal número fosse exato e de suma importância, Lucas não teria dito quase).
Naqueles dias, levantou-se Pedro no meio dos irmãos (ora, compunha-se a assembléia de umas cento e vinte pessoas Atos 1:15)
Literalmente, "uma multidão de nomes, cerca de cento e vinte", em que "nomes" pode significar "pessoas" sem distinção de sexo (veja H. Bietenhard, "onoma" TDNT, vol. 5, p. 270), embora alguns argumentem, com base nas versões siríaca e árabe, que a palavra significa homens, distinguindo com precisão o gênero. O sermão de Pedro implica em que somente homens estavam presentes.
Entretanto, é interessante observar que, segundo o costume judaico, cento e vinte homens era o número mínimo requerido para constituir-se uma comunidade dotada de poderes para nomear um painel completo de vinte e três juízes que integrariam o tribunal local. A comunidade que tivesse menos de cento e vinte homens só poderia nomear uma corte de três juízes. Pedro assume como líder e é o que seria de se esperar, em função dos evangelhos, nos quais ele aparece como figura dominante entre os Doze. O termo "irmãos" (Nova Versão Internacional traz "crentes") é empregado aqui pela primeira vez em Atos, sendo talvez a mais antiga designação cristã dos membros da igreja.
continua na parte 2
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