A história da igreja primitiva era
muito mais complexa do que Lucas nos induz a crer. Todavia, ainda podemos
aceitar a idéia de que a igreja começou com um "Pentecoste determinativo
em Jerusalém", que deu à igreja seu ímpeto e caráter. A historicidade
essencial desse evento tem sido firmemente estabelecida. Para um observador
externo, poderia parecer que o começo foi uma explosão de entusiasmo dentro da
seita dos nazarenos. Para os crentes, foi um episódio de importância crucial na
história da salvação, visto que se contemplou o cumprimento das promessas do
Pai nas profecias de Isaías 32:15 e Joel 2:28-32, como indicação segura de que
o novo tempo havia sido inaugurado, e que o reino de Deus havia chegado.
Ao cumprir-se o dia de Pentecostes,
estavam todos reunidos no mesmo lugar; de repente, veio do céu um som, como de
um vento impetuoso, e encheu toda a casa onde estavam assentados. E apareceram,
distribuídas entre eles, línguas, como de fogo, e pousou uma sobre cada um
deles.(Atos 2:1-3)
O Pentecoste era a segunda das três
grandes festas anuais dos judeus, sendo a Páscoa a primeira e a dos
Tabernáculos a terceira (veja Deuteronômio 16:16). Um número bem maior de
peregrinos chegava para a festa de Pentecoste, visto que essa época do ano era
a melhor para as viagens. Sem dúvida isto constituiu fator decisivo na
ordenação providencial dos eventos. Neste Pentecoste em particular (não há
certeza em que ano ocorreu: o ano 30 depois de Cristo é uma data como outra
qualquer) estavam todos (os crentes) reunidos no mesmo lugar. Por todos podemos
presumir que pelo menos aqueles cento e vinte de Atos 1:15 estavam incluídos
aí, mas poderia ter havido outros, provenientes da Galiléia e de outras partes,
que haviam vindo a Jerusalém para esse festival. Não ficamos sabendo onde os
discípulos estão reunidos. O número de crentes envolvidos, especialmente se
agora sobrepujava os cento e vinte, torna menos provável que o grupo se reunia
numa casa particular, mas talvez num local público, ou ao ar livre, conquanto
não se possa excluir outra possibilidade. Por outro lado, o fato de a multidão
ficar rapidamente a par do que estava acontecendo sugere que os discípulos
estariam num lugar onde podiam ser vistos, como por exemplo, no pátio externo
do templo. O uso da palavra "casa" no versículo 2 não elimina esta
hipótese (compare Isaías 6:1, 4; Lucas 2:49), embora pudéssemos esperar que o
templo fosse mencionado se, de fato, a reunião se realizasse nele.
Todavia, de uma coisa podemos ter
absoluta certeza: algo aconteceu naquele dia que convenceu os discípulos do
fato de que o Espírito de Deus havia descido sobre eles — que eles haviam sido
"batizados com o Espírito Santo", como Jesus havia dito que o seriam
(Atos 1:5). Lucas descreve a cena: De repente veio do céu um som, como de um
vento impetuoso (versículo 2). O comentário de Lucas de que "veio do
céu" reflete sua intenção de descrever um acontecimento sobrenatural, e
não algo natural. Observe as palavras "como que". Não se tratava de
um vento, mas algo de que o vento servia de símbolo, a saber, a presença e o
poder divinos (compare 2º Samuel 5:24; 22:16; Jó 37:10; Salmo 104:4; Ezequiel
13:13). Visto que vento sugere vida e poder, transformou-se no hebraico e
também no grego a palavra para "espírito", sendo que aqui a palavra
significa - especialmente - o Espírito de Deus. E com o som semelhante ao do
vento também apareceram línguas repartidas, como que de fogo (versículo 3).
Mais uma vez, a expressão "como que" é importante, porque novamente o
nome de algo natural é empregado a fim de representar o sobrenatural. As
palavras de João Batista em Mateus 3:11 e seguintes, provêem uma pista para o
significado do fogo, pois o profeta se refere ao Espírito ao mencionar o fogo e
o julgamento. Outra vez temos um significado para o Espírito de Deus, agora no
simbolismo do fogo (compare Êxodo 3:2; 19:18; Ezequiel 1:13), com a implicação
de que o fogo veio a fim de purificar o povo de Deus (compare Malaquias 3:1 e
seguintes). Notemos mais um simbolismo aqui: aquela semelhança de língua de
fogo repousou sobre cada um deles (versículo 3). Esses discípulos representavam
a igreja toda, e é nessa categoria que todos participam da dádiva de Deus.
Todavia, até que ponto aquele som e
aquela aparição eram fenômenos objetivos? No capítulo 10, de Atos, em que a
experiência de Cornélio é assemelhada à dos discípulos neste capítulo, não se
faz nenhuma menção a aparições, nem a sons. É por isso que muitos argumentam
dizendo não ter havido nem som nem visão alguma nessa ocasião, e que Lucas
apresenta algo que foi pura experiência íntima, pessoal, como um fenômeno
auditivo e visual. Todavia, permanece o fato de que Lucas nos apresenta dois
incidentes bem diferentes entre si, insistindo que aqui houve algo passível de
observação — eles viram (versículo 3). Após cuidadoso exame das evidências,
concluímos de que "o que chegou a eles não lhes chegou das profundezas de
seu subconsciente individual ou coletivo; foi algo que veio de longe dali, de
fora deles mesmos. Aquela foi uma experiência do poder divino inesperado, poder
que lhes era entregue, poder em forma de dádiva, com suas características
inerentes"
Todavia, essa também foi uma
experiência subjetiva. Lucas afirma isso com a expressão todos foram cheios do
Espírito Santo. "Tornar-se cheio" é algo diferente de "estar
cheio", e expressa a experiência consciente do momento. Os discípulos
sentiram, bem como viram e ouviram, e deram expressão a seus sentimentos ao
falar em outras línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia. Este verbo
especial "falar" (grego apopht-hegesthai) é peculiar a Atos, no Novo
Testamento, (como por exemplo em Atos 2:14; 26:25, mas é empregado noutras
passagens do grego bíblico para significar a expressão dos profetas (por exemplo,
1º Crônicas 25:1; Ezequiel 13:9; Miquéias 5:12).
Esse fenômeno de os discípulos
falarem em outras línguas parece significar algo diferente de outras
referências semelhantes, de outras passagens. É que "língua" aqui é
empregada com uma palavra que significa "linguagem" ou
"dialeto" (grego dialectos, capítulo 2, versículos 6, 8); o que
estava sendo dito aparentemente era inteligível e, por isso, devemos supor que
os discípulos falavam línguas reconhecíveis. Entretanto, não há razões para
julgarmos que o mesmo aconteceu em outras ocasiões em Atos, quando algo
parecido ocorreu (Atos 10:44 e seguinte; 19: 1 e seguintes), e temos todas as
razões para entender que I Coríntios 12-14, trata de um fenômeno inteiramente
diferente do de Pentecoste, pois, ali toda a argumentação de Paulo repousa em
"línguas" ininteligíveis, além do entendimento, necessitando de
"interpretação" (e não de tradução). Parece, portanto, que na igreja
de Corinto e talvez em Atos 10 e 19, as "línguas" constituíam uma
espécie de expressão enlevada, aquilo que Paulo, em certa ocasião, chamou de
"a língua dos anjos" (I Coríntios 13:1), e em outra (talvez)
"gemidos inexprimíveis" (Romanos 8:26).
Entretanto, seria admissível que
houvesse dois fenômenos diferentes? Presumindo que não, que não se trata de
dois fenômenos, Lucas tem sido acusado de entender mal ou de reinterpretar uma
tradição anterior em que as "línguas" de Atos 2 foram as mesmas
expressões de êxtase das demais passagens. Se isso não aconteceu, a tradição é
que chegou a Lucas distorcida: os discípulos teriam realmente falado em
"línguas" (no sentido usual desta palavra), mas as pessoas julgaram
ouvir os crentes louvando a Deus nas próprias línguas deles.
Não há nenhuma razão para duvidarmos
de que os discípulos experimentaram uma linguagem de êxtase no dia de
Pentecoste. E há boas razões para crermos, tanto pelo texto como pelos
paralelismos históricos religiosos, que a glossolalia e o comportamento dos
discípulos foram de ordem tal que muitas daquelas pessoas, que tudo observavam,
julgaram ter reconhecido palavras de louvor a Deus em outros idiomas.
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