sexta-feira, 6 de abril de 2012

A Descida do Espírito Santo


A história da igreja primitiva era muito mais complexa do que Lucas nos induz a crer. Todavia, ainda podemos aceitar a idéia de que a igreja começou com um "Pentecoste determinativo em Jerusalém", que deu à igreja seu ímpeto e caráter. A historicidade essencial desse evento tem sido firmemente estabelecida. Para um observador externo, poderia parecer que o começo foi uma explosão de entusiasmo dentro da seita dos nazarenos. Para os crentes, foi um episódio de importância crucial na história da salvação, visto que se contemplou o cumprimento das promessas do Pai nas profecias de Isaías 32:15 e Joel 2:28-32, como indicação segura de que o novo tempo havia sido inaugurado, e que o reino de Deus havia chegado.
Ao cumprir-se o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar; de repente, veio do céu um som, como de um vento impetuoso, e encheu toda a casa onde estavam assentados. E apareceram, distribuídas entre eles, línguas, como de fogo, e pousou uma sobre cada um deles.(Atos 2:1-3)

O Pentecoste era a segunda das três grandes festas anuais dos judeus, sendo a Páscoa a primeira e a dos Tabernáculos a terceira (veja Deuteronômio 16:16). Um número bem maior de peregrinos chegava para a festa de Pentecoste, visto que essa época do ano era a melhor para as viagens. Sem dúvida isto constituiu fator decisivo na ordenação providencial dos eventos. Neste Pentecoste em particular (não há certeza em que ano ocorreu: o ano 30 depois de Cristo é uma data como outra qualquer) estavam todos (os crentes) reunidos no mesmo lugar. Por todos podemos presumir que pelo menos aqueles cento e vinte de Atos 1:15 estavam incluídos aí, mas poderia ter havido outros, provenientes da Galiléia e de outras partes, que haviam vindo a Jerusalém para esse festival. Não ficamos sabendo onde os discípulos estão reunidos. O número de crentes envolvidos, especialmente se agora sobrepujava os cento e vinte, torna menos provável que o grupo se reunia numa casa particular, mas talvez num local público, ou ao ar livre, conquanto não se possa excluir outra possibilidade. Por outro lado, o fato de a multidão ficar rapidamente a par do que estava acontecendo sugere que os discípulos estariam num lugar onde podiam ser vistos, como por exemplo, no pátio externo do templo. O uso da palavra "casa" no versículo 2 não elimina esta hipótese (compare Isaías 6:1, 4; Lucas 2:49), embora pudéssemos esperar que o templo fosse mencionado se, de fato, a reunião se realizasse nele.
Todavia, de uma coisa podemos ter absoluta certeza: algo aconteceu naquele dia que convenceu os discípulos do fato de que o Espírito de Deus havia descido sobre eles — que eles haviam sido "batizados com o Espírito Santo", como Jesus havia dito que o seriam (Atos 1:5). Lucas descreve a cena: De repente veio do céu um som, como de um vento impetuoso (versículo 2). O comentário de Lucas de que "veio do céu" reflete sua intenção de descrever um acontecimento sobrenatural, e não algo natural. Observe as palavras "como que". Não se tratava de um vento, mas algo de que o vento servia de símbolo, a saber, a presença e o poder divinos (compare 2º Samuel 5:24; 22:16; Jó 37:10; Salmo 104:4; Ezequiel 13:13). Visto que vento sugere vida e poder, transformou-se no hebraico e também no grego a palavra para "espírito", sendo que aqui a palavra significa - especialmente - o Espírito de Deus. E com o som semelhante ao do vento também apareceram línguas repartidas, como que de fogo (versículo 3). Mais uma vez, a expressão "como que" é importante, porque novamente o nome de algo natural é empregado a fim de representar o sobrenatural. As palavras de João Batista em Mateus 3:11 e seguintes, provêem uma pista para o significado do fogo, pois o profeta se refere ao Espírito ao mencionar o fogo e o julgamento. Outra vez temos um significado para o Espírito de Deus, agora no simbolismo do fogo (compare Êxodo 3:2; 19:18; Ezequiel 1:13), com a implicação de que o fogo veio a fim de purificar o povo de Deus (compare Malaquias 3:1 e seguintes). Notemos mais um simbolismo aqui: aquela semelhança de língua de fogo repousou sobre cada um deles (versículo 3). Esses discípulos representavam a igreja toda, e é nessa categoria que todos participam da dádiva de Deus.
Todavia, até que ponto aquele som e aquela aparição eram fenômenos objetivos? No capítulo 10, de Atos, em que a experiência de Cornélio é assemelhada à dos discípulos neste capítulo, não se faz nenhuma menção a aparições, nem a sons. É por isso que muitos argumentam dizendo não ter havido nem som nem visão alguma nessa ocasião, e que Lucas apresenta algo que foi pura experiência íntima, pessoal, como um fenômeno auditivo e visual. Todavia, permanece o fato de que Lucas nos apresenta dois incidentes bem diferentes entre si, insistindo que aqui houve algo passível de observação — eles viram (versículo 3). Após cuidadoso exame das evidências, concluímos de que "o que chegou a eles não lhes chegou das profundezas de seu subconsciente individual ou coletivo; foi algo que veio de longe dali, de fora deles mesmos. Aquela foi uma experiência do poder divino inesperado, poder que lhes era entregue, poder em forma de dádiva, com suas características inerentes"
Todavia, essa também foi uma experiência subjetiva. Lucas afirma isso com a expressão todos foram cheios do Espírito Santo. "Tornar-se cheio" é algo diferente de "estar cheio", e expressa a experiência consciente do momento. Os discípulos sentiram, bem como viram e ouviram, e deram expressão a seus sentimentos ao falar em outras línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia. Este verbo especial "falar" (grego apopht-hegesthai) é peculiar a Atos, no Novo Testamento, (como por exemplo em Atos 2:14; 26:25, mas é empregado noutras passagens do grego bíblico para significar a expressão dos profetas (por exemplo, 1º Crônicas 25:1; Ezequiel 13:9; Miquéias 5:12).
Esse fenômeno de os discípulos falarem em outras línguas parece significar algo diferente de outras referências semelhantes, de outras passagens. É que "língua" aqui é empregada com uma palavra que significa "linguagem" ou "dialeto" (grego dialectos, capítulo 2, versículos 6, 8); o que estava sendo dito aparentemente era inteligível e, por isso, devemos supor que os discípulos falavam línguas reconhecíveis. Entretanto, não há razões para julgarmos que o mesmo aconteceu em outras ocasiões em Atos, quando algo parecido ocorreu (Atos 10:44 e seguinte; 19: 1 e seguintes), e temos todas as razões para entender que I Coríntios 12-14, trata de um fenômeno inteiramente diferente do de Pentecoste, pois, ali toda a argumentação de Paulo repousa em "línguas" ininteligíveis, além do entendimento, necessitando de "interpretação" (e não de tradução). Parece, portanto, que na igreja de Corinto e talvez em Atos 10 e 19, as "línguas" constituíam uma espécie de expressão enlevada, aquilo que Paulo, em certa ocasião, chamou de "a língua dos anjos" (I Coríntios 13:1), e em outra (talvez) "gemidos inexprimíveis" (Romanos 8:26).
Entretanto, seria admissível que houvesse dois fenômenos diferentes? Presumindo que não, que não se trata de dois fenômenos, Lucas tem sido acusado de entender mal ou de reinterpretar uma tradição anterior em que as "línguas" de Atos 2 foram as mesmas expressões de êxtase das demais passagens. Se isso não aconteceu, a tradição é que chegou a Lucas distorcida: os discípulos teriam realmente falado em "línguas" (no sentido usual desta palavra), mas as pessoas julgaram ouvir os crentes louvando a Deus nas próprias línguas deles.
Não há nenhuma razão para duvidarmos de que os discípulos experimentaram uma linguagem de êxtase no dia de Pentecoste. E há boas razões para crermos, tanto pelo texto como pelos paralelismos históricos religiosos, que a glossolalia e o comportamento dos discípulos foram de ordem tal que muitas daquelas pessoas, que tudo observavam, julgaram ter reconhecido palavras de louvor a Deus em outros idiomas.

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